No caderno A2, Espaço Aberto do Jornal Estado de São Paulo que circulou no dia 05 de junho de 2017 o doutor em ecologia e chefe geral da Embrapa Monitoramento por Satélite Evaristo de Miranda apresenta matéria “Agricultura lidera preservação no Brasil”.
Sabemos e não questionamos o enorme valor do produtor rural à economia e ao desenvolvimento nacional e o seu papel relevante na conservação de remanescentes de vegetação nativa no Brasil, mas não podemos nos deparar com informações inconsistentes sem nos manifestar. Nos unimos a outras manifestações já publicadas de Professores da Universidade de São Paulo e funcionários do Serviço Florestal Brasileiro de profundo questionamento frente ao posicionamento publicado no dia 05. Não há artigos científicos que sustentem a afirmação do Dr. Miranda que “...a vegetação preservada [do Brasil] chega a quase 75% do território nacional.” A discrepância é enorme quando confrontada, por exemplo, com os números do projeto MapBiomas, consórcio de dezenas de centros de pesquisa nacionais e internacionais, que disponibiliza sua base de dados e códigos de programação em site aberto.
Dr. Miranda usou de “estatística criativa” para chegar aos tais 75%, uma vez que soma Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Áreas de Preservação Permanentes, Reservas Legais, áreas auto-declaradas e sobrepostas do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e áreas de pecuária sob pasto nativo dos Pampas e Pantanal. Agrega áreas públicas dedicadas exclusivamente à preservação com áreas privadas degradadas e outras dedicadas ao uso agropecuário, situações muito distintas na capacidade de prover serviços ecossistêmicos, contribuir com a redução de emissões de gases de efeito estufa, beneficiar a biodiversidade ou contribuir para o ciclo hidrológico; chamando tudo, num pacote, de “vegetação conservada”. Além disso ignora os dados lançados recentemente sobre o aumento do desmatamento na Amazônia e na protegida Mata Atlântica. Não associa a importância da conservação da vegetação nativa com a garantia de produção de água para a geração de energia, para o abastecimento das cidades e indústrias e para a própria perseverança no longo prazo da produção agropecuária. Desconsidera o principio constitucional que trata da função social da terra.
Mas mais útil do que confrontar os números apresentados por Miranda cabe refletir a serviço do que está a retórica e as conclusões arquitetadas na matéria. Para qual projeto de país e para quais propósitos interessa a mensagem de que a natureza á excessivamente protegida no Brasil e que isto pode implicar em barreira para o crescimento econômico do Brasil? O agro-modelo defendido com estes argumentos é claramente expansionista e desmatador, já que (sic) “apenas 25% são realmente usados, o restante é vegetação preservada”.
O que a ciência de fato nos diz é que não é necessário desmatar. Basta incentivar tecnologias e boas práticas na pecuária para liberar grandes extensões de terras aptas à expansão da agricultura. O estoque de terras de elevada aptidão agrícola ainda cobertas com vegetação preservada está quase terminado. Crescer a área via desmatamento, com poucas exceções, irá degradar sem acrescentar nada à produção. O avanço do conhecimento vem apoiando avanços importantes em diálogos, soluções e propostas de políticas públicas e privadas na direção de uma via de intensificação sustentável que deve resultar em um ganha-ganha para a sociedade e para os produtores.
Além da ciência, valores morais, éticos e o mínimo de compromisso republicano apontam no mesmo sentido. Avançar no desmatamento para expandir o setor não vai beneficiar nenhum projeto de desenvolvimento nacional, além de piorar a imagem do produtor rural nos mercados internacionais e na nossa sociedade. Ademais, não alinha o Brasil com a vanguarda da visão do futuro do planeta, representada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU.
Os argumentos apresentados e as conclusões só fazem sentido se usarmos os termos expandir, desmatar e concentrar. Já se usarmos os termos consolidar, desenvolver e distribuir tanto faz discutir o tamanho da área com “vegetação preservada” que existe no Brasil, porque não há a menor necessidade ou benefício de reduzir seu tamanho.
O discurso expandir, desmatar e concentrar se retroalimenta em uníssono harmonioso com os sinais que o Congresso Nacional vem nos enviando. Uma agenda de retrocesso de Unidades de Conservação, de promoção de meios para a concentração de terras, de flexibilização das licenças ambientais e de precarização dos trabalhadores rurais. Uma agenda que beneficia um setor econômico influente, porém, que como qualquer outro, deve ser monitorado para se evitar desmandos e corporativismos exacerbados. Uma agenda que nada tem a ver com a capacidade que o Brasil tem de garantir seu protagonismo no agro, essencial para os brasileiros e para todos os povos que importam o resultado de nossas super-safras. Também conflita com o compromisso estabelecido pelo país no Acordo de Paris, sob o qual os principais líderes mundiais ratificaram nos últimos dias a urgência e importância.
Para defender consolidar, desenvolver e distribuir não é necessário ignorar a ciência que indica caminhos que permitem conciliar a produção com a preservação, anseio compartilhado pela maior parte da sociedade e dos próprios produtores rurais, que mais e mais se engajam nesta agenda adotando, por exemplo, plantio direto, Integração Lavoura Pecuária e Florestas e restaurando áreas destinadas à conservação.
Entretanto, para defender expandir, desmatar e concentrar é preciso se aventurar na perigosa seara da criatividade estatística, da ciência individual feita através do PowerPoint ao invés dos consórcios acadêmicos que preconizam métodos abertos, com resultados revisados anonimamente pelos pares e publicados em revistas idôneas.
*Prof. Gerd Sparovek, USP-GeoLab
*Luis Fernando Guedes Pinto, Doutor em Agronomia e membro do Observatório do Código Florestal
*Frederico Machado, Especialista Agricultura e membro do Observatório do Código Florestal