Buscar consensos, mas também usar e abusar do que a ciência tem a oferecer são os caminhos apontados por Gerd Sparovek, especialista em planejamento de uso da terra e conservação, para reduzir os atritos entre produtores rurais e ambientalistas.
Além de professor titular da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, no Departamento de Ciência do Solo (USP/Esalq-LSO), Gerd também é Presidente da Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Na USP, coordena o GeoLab, laboratório de geoprocessamento que desenvolve inteligência estratégica e espacial no apoio à decisão da interface agricultura e meio ambiente.
Para Gerd, o tempo de analisar se a lei florestal é boa ou ruim já passou. Agora chegou o momento de colocar mãos a obra e utilizar todas as ferramentas disponíveis para implementar o código em toda a sua plenitude. Confira a seguir essas e outras análises na entrevista exclusiva:
Revista Iniciativa - Muita pesquisa já foi feita sobre a Lei de 2012 e seus efeitos. Qual é a visão que a ciência tem hoje sobre ela, e qual é a paisagem prevista para os próximos anos?
GERD SPAROVEK - Acho que a fase em que a pesquisa acadêmica apontou os efeitos e os retrocessos da nova lei deve terminar. Precisamos pacificar esta discussão. Isto é essencial, na academia, na sociedade e junto ao setor produtivo, para podermos olhar para frente e encontrar a melhor forma, para todos, de implementação da nova lei. Houve retrocesso, mas há avanços importantes. É nisto que devemos usar nossa energia: construir o melhor cenário para implementar a lei. Equipar os gestores públicos, colocar à disposição da sociedade ferramentas de monitoramento eficientes, buscar soluções e tecnologias eficazes e baratas para restauração, e garantir o financiamento para os produtores. Usar de energia positiva e construtiva para avançarmos juntos. Ciência, sociedade, governo e produtores procurarem a melhor forma de implementação das regras que estão aí, garantir ambos, a segurança jurídica pelo lado do produtor, e os benefícios ambientais, principalmente da restauração das Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Uma questão que foi levantada e que atrasa a implementação do Código é a da identidade ecológica. O que é isso? É um conceito em discussão na ciência, ou já existe um consenso que permita a aplicação da Lei?
A identidade ecológica veio em decorrência de uma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), que questionava a enorme abrangência da possibilidade de compensação de Reserva Legal usando o Bioma como referência. Veio acertadamente corrigir esta mudança da lei.
Isso porque a escala de Bioma não garante que a vegetação da compensação será similar à da área do déficit (e é importante que os serviços ambientais prestados pela compensação sejam semelhantes aos que seriam prestados pela vegetação nas áreas de déficit).
Sem esse cuidado, o mais provável seria que a compensação se concentrasse em áreas de grandes excedentes de vegetação nativa e baixa aptidão agrícola. Apesar do mérito da proposta de corrigir isto com uma geografia de compensação mais restrita ser acertado, o grande tempo entre a promulgação da lei e esta decisão gerou uma situação política muito ruim.
Muitos proprietários já se movimentaram para compensar no Bioma, assim como o mercado imobiliário já reagiu a esta possibilidade. Muitas terras já mudaram de mão para atender a compensação.
Por isto, dificilmente haverá consenso nesta matéria, mesmo que, do ponto de vista ambiental, nunca terem havido dúvidas de que a ampliação da geografia de compensação para Bioma foi um dos maiores retrocessos do novo Código Florestal.
O GeoLab fez um mapa do déficit de vegetação no estado de São Paulo, que foi apresentado no evento “Código Florestal, a lei pegou!”, do Observatório do Código Florestal (apresentação disponível no site www.observatorioflorestal.org.br). Qual é o panorama geral dos imóveis rurais de São Paulo em relação às leis ambientais?
Fizemos uma modelagem muito detalhada, usando as melhores bases de dados disponíveis para São Paulo e, pela primeira vez, estimamos o efeito do Art. 68, da temporalidade legal no caso da Reserva Legal, valendo a lei da época em que o imóvel foi desmatado. Vimos um resultado em que há uma enorme concentração dos déficits de APP e RL em poucas regiões, e num número muito pequeno de propriedades. A implementação precisa se guiar por isto, preparar estas regiões para um enorme esforço de restauração que está por vir. Inovar, usar a melhor tecnologia e o melhor conhecimento possível. Procurar o financiamento em conjunto e reduzir os custos. Apostar na restauração de RL com finalidade produtiva, para criar polos de economia de base florestal que se sustentem. Priorizar estas áreas quentes gerando ali as soluções e os serviços necessários para as outras regiões de implementação é o melhor caminho a se seguir.
Na mesma apresentação você falou que não é necessário monitorar o Estado inteiro, e sim dar preferência para algumas regiões chave que estão com déficit maior. Como isso funcionaria?
É preciso monitorar tudo, mas com detalhamento diferenciado. Nas regiões de grande concentração de passivos é necessário monitorar mais, para orientar da melhor forma possível quem está restaurando e garantir o melhor benefício ambiental dos investimentos. Em regiões de menor déficit o monitoramento que já existe é suficiente.
Que outro tipo de priorização pode ser dada para a área de compensação? Por exemplo, a Iniciativa Verde direciona parte de seus projetos de restauro e compensação de carbono para a Serra da Mantiqueira, por sua relação com o Sistema Cantareira e o abastecimento de água da metrópole. Existe esse tipo de mapeamentos dos lugares estratégicos, com maior quantidade de serviços ambientais?
Existem muitos mapas de áreas prioritárias para restauração, até porque os olhares são muito distintos. Pode olhar pela perspectiva da água, da biodiversidade, da conexão, do carbono, há várias formas. A ciência por trás destes mapas também evolui, assim como a percepção da sociedade sobre o que é prioridade. Isto é dinâmico, e certamente terá que ser revisto agora com o Código Florestal. Nunca antes a escala da restauração foi tão grande, o que abre caminho para rever as prioridades. A Mantiqueira, em muitos aspectos é prioritária, e continuará sendo mesmo dentro do novo Código Florestal. Mas outras regiões prioritárias podem surgir.
Ainda sobre o mapa, existe um motivo aparente para certas regiões terem tão pouca vegetação? Algo que ligue os imóveis com maior déficit?
Sim, há elementos comuns. Só há grandes déficits onde predominam imóveis grandes. Os imóveis menores, principalmente os menores de 4 módulos fiscais, tiveram as reduções maiores de exigência, reduzindo assim os déficits. Os usos da terra mais intensivos, como as lavouras e a cana de açúcar também tem mais déficits. A ocupação da paisagem pela agricultura tem pouca casualidade, por isto há concentração e aglutinações de padrões.
Você também comentou no evento que um dos resultados de grupos de pesquisa e laboratórios que se debruçam sobre o Código é poder enxergar os vazios deixados por ele, ou seja, onde ele não será efetivo. Que vazios são esses e quais ferramentas podem ser usadas para resolvê-los?
Os vazios são regiões em que há necessidade de melhorias ambientais por diversas razões nas quais o Código vai gerar pouca restauração. As regiões densamente povoadas com estrutura fundiária fragmentada são um padrão importante, porque nele se enquadram área importantes de manancial. Há outros exemplos, mas o mais importante é que já sabemos disto agora, antes do Código ser implementado, e podemos ser propositivos.
Mudando um pouco de assunto, daqui a pouco vai fazer um ano que você está na presidência da Fundação Florestal. O que pôde ver e aprender nesse tempo sobre a elaboração de políticas para conservação e gestão das florestas do estado?
Puxa, já vai fazer um ano, eu não tinha feito a conta ainda. Foi um tempo de muito aprendizado. Me envolvi muito na gestão, aspecto que o cargo de presidência da Fundação nem exige. Fiz isto pelas oportunidades que eu vejo em toda hora. É cedo, e no tempo errado, de falar sobre isto. Mas o mais importante para mim foi a oportunidade de entender como funciona a gestão do patrimônio ambiental do Estado e, na medida do possível, ajudar na sua preservação e melhoria. Vou poder responder esta pergunta de forma mais objetiva daqui um tempo, quando sair Fundação.
Tivemos muitas saídas e mudanças de cargos na gestão pública ambiental de São Paulo. Como enxerga essas mudanças?
Os problemas ambientais são muito complexos e técnicos. Não há soluções mágicas. Mais do que em outras áreas, a única maneira de lidar com problemas ambientais é partir do melhor conhecimento disponível e da melhor solução técnica. Por isto é necessário garantir a formação adequada e continuada dos quadros do Governo, uma interação aberta e eficiente com a academia e sociedade civil, recursos para pesquisa e desenvolvimento, e, principalmente, a blindagem do loteamento político das lideranças do governo nesta área e a autonomia de sua área técnica. Como sociedade devemos lutar para que a área ambiental, em todos os níveis de gestão pública, seja tratada fora dos arranjos políticos, prevalecendo as teses técnicas e o conhecimento científico, independente da linha que o governo segue em outras áreas. Qualquer gestor nesta área precisa saber o que está fazendo, ter formação e histórico na área ambiental, entender os problemas na profundidade e complexidade necessária. As transições e mudanças de cargos por questões políticas não ajudam neste esforço.