Por Reinaldo Canto e Roberto Resende
Edevando, ou melhor, Magoo e Maria Izabel, mais conhecida como Bel, compõem uma dupla de técnicos que conhece bem a realidade no campo existente no interior de São Paulo, mais precisamente, na região de Sorocaba que compreende o Assentamento de Porto Feliz, Assentamento Ipanema e Bela Vista em Iperó, o Capão Alto em Itapetininga e a Comunidade Remanescente de Quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora.
Com destacada atuação no Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo* (ITESP), na Regional de Sorocaba, eles trabalham no apoio aos agricultores de assentamentos e quilombos, desde 1993 e Bel, desde 1987.
Magoo e Bel vivenciaram inúmeras situações e desafios que, por vezes, superam em muito o simples apoio técnico que se espera de especialistas em resolver problemas que afetam essas famílias, nem sempre bem preparadas para enfrentar as agruras de uma propriedade rural e tirar dali o seu sustento.
De qualquer forma, o que une as expectativas de ambos os profissionais é um otimismo contagiante. Qualidade que o leitor poderá acompanhar na sequência desta conversa concedida com exclusividade para a segunda edição da revista Plantando Águas, patrocinada pela Petrobras.
Nova realidade
Informação e capacitação é uma das questões mais delicadas e decisivas que separam o sucesso do fracasso de um assentamento.
Magoo – Ainda há muito espaço e necessidade de adquirir conhecimentos para que a vida das famílias seja mais tranquila e produtiva. Mesmo sabendo que a necessidade de apoio e de informações ainda seja uma constante, em todos os anos de acompanhamento na evolução dos assentamentos na região de Sorocaba dos quais Bel e Magoo tem participado ativamente, é nítido que o quadro tem melhorado muito nos últimos anos.
Bel – A reforma agrária como política fundiária fica bastante legitimada quando a gente faz um levantamento do progresso dessas famílias. Os filhos dos assentados nas escolas, alguns já fazendo faculdade e exercendo a cidadania, se deve a essa política.
Eles falam com tristeza de um passado não tão distante quando era comum ver os agricultores de todas as idades sem dentes. Agora, a situação é bem diferente.
Magoo diz que a oportunidade de integrar os assentamentos com as cidades foi essencial, tanto do ponto de vista social como do econômico.
Magoo – Programas institucionais como o da alimentação escolar Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foram fundamentais para a construção dessa nova realidade. O fato dos assentamentos produzirem alimentos, que depois farão parte da merenda escolar ou doados para instituições filantrópicas, é uma garantia da venda da produção e da fixação do homem no campo.
E essa situação de integração também contribuiu muito para a inserção dos assentados na vida comunitária e para o aumento da autoestima das famílias. Estas passam a ter orgulho de serem agricultores.
Bel – Se antes eles eram marginalizados, estigmatizados, deixaram de ser, graças aos programas como o da merenda escolar e o PAA.
Bel – Eu, às vezes, invejo a qualidade de vida nos assentamentos. Alguns proprietários até abandonam as terras, mas isso não ocorre nos assentamentos.
A transição rumo ao uso sustentável da terra
Se parte dos problemas dos assentamentos tem encaminhado para uma solução feliz, a nova etapa que envolve também a sustentabilidade no campo ainda possui diversos obstáculos a serem transpostos.
Magoo – Muitos agricultores ainda desconhecem as possibilidades de um Sistema Agroflorestal (SAF)**, faltam mais referências de experiências concretas e informações.
Bel – Faltam exemplos, nesse sentido, portanto é necessário o apoio do governo do estado para ajuda-los a colocar em prática essas ações mais sustentáveis.
Mas ambos afirmam que uma visão de parceria tem facilitado bastante o trabalho.
Magoo – Se antes era na base da notificação, da multa, no caso do uso ilegal de uma área de reserva legal (RL) e de preservação permanente (APP) demarcada, sem conversa ou negociação, hoje a lei possibilita o uso dessa mesma área de maneira menos agressiva durante três anos com o plantio de espécies economicamente viáveis, tais como hortaliças, feijão, abacaxi e outras nas entre -linhas das árvores nativas, graças a uma resolução do estado.
Roberto Resende – Essa foi uma norma estadual, a Resolução da Secretaria do Meio Ambiente nº 21 de 2001, que, pela primeira, vez deixou clara a possibilidade de se fazer cultivos agrícolas temporários em APP como facilitadores de uma ação de recuperação ambiental.
Bel - As espécies autorizadas e escolhidas com apoio da Esalq*** nos primeiros projetos como plantas medicinais, madeira para cabo de enxada e até orientação para produção de mel, contribuíram para reduzir as resistências.
Magoo – Tá bem mais fácil!
Bel – A preservação tem que trazer algum benefício para o agricultor, pois em caso contrário, parece que ele está perdendo espaço de plantio.
Magoo – E se antes não havia cultura de preservação, os bons resultados econômicos acompanhados do reconhecimento para os ganhos ambientais transformam a realidade. Temos, aí, um bom caminho!
Bel – Dia desses, uma agricultora falava com orgulho da volta dos jacus, que eles não viam por lá há muito tempo. É um exemplo de percepção do próprio assentado para os benefícios ambientais.
Melhoria da técnicas nos projetos de recuperação
Bel – A roçadeira motorizada na manutenção desses plantios é a mais viável ambientalmente, pois ela permite a limpeza do terreno sem necessidade do uso de herbicida que contamina o solo e agiliza o trabalho que antes era muito demorado com o uso da enxada. Magoo – Aí, permitiu também entrar com o uso de adubos verdes, tais como feijão de porco e guandu que são meios para ajudar o agricultor a preservar sua terra, mas garantindo a viabilidade econômica.
Articulação entre Iniciativa Privada e Estado também contribui para o sucesso de projetos ambientais
Magoo – Em 2004, surgiu uma boa proposta de parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, com recursos de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) das concessionárias de estradas Viaoeste e SP Vias para trabalhar na recuperação ambiental no Assentamento Ipanema.
Bel – Foi uma primeira experiência de remuneração para a restauração e sem que houvesse o sentimento de perda de uma área agricultável, pois eles ganhavam para plantar espécies nativas.
Magoo – Esse tipo de apoio é muito importante para garantir que os assentados fiquem satisfeitos ao serem remunerados para preservar ou recuperar áreas.
Código Florestal, apesar dos pesares, representa uma janela de oportunidades
Magoo – Apesar dos problemas do novo Código Florestal, ele permitiu algumas inovações como a possibilidade de maior flexibilidade nos restauros e o uso de espécies exóticas, como árvores frutíferas. Isso ajudou a conquistar o agricultor e reduzir as resistências para a recuperação de áreas degradadas.
Trabalho com a Iniciativa Verde
O projeto Plantando Águas realizado com os agricultores do Assentamento Ipanema, Porto Feliz, Bela Vista, Carlos Lamarca e Quilombo Cafundó representa outra etapa importante no avanço do trabalho do ITESP para que o uso da terra se torne ainda mais sustentável.
Magoo – Os assentados têm trabalhado bem com a Iniciativa Verde, muitas vezes por meio de suas organizações, associações e cooperativas.
Bel – O resultado tem servido como um verdadeiro balão de ensaio. Uma experiência que mostra na prática que um assentamento não detona, não destrói o meio ambiente, pelo contrário, pode mesmo recuperar a vegetação natural da propriedade.
Magoo - Um dos grandes desafios é o aproveitamento da água. Evitar que ela seja contaminada.
Bel – Esse projeto ajuda a preservar as fontes de água do assentamento e quilombo, com a instalação de fossas biodigestoras e do jardim filtrante. No fim, o benefício é geral: para os assentados, quilombolas e também para o meio ambiente.
Outra frente de batalha: os quilombos representam hoje os maiores desafios
Hoje, um dos mais importantes desafios é levar o progresso obtido com o trabalho realizado nos assentamentos para os quilombos. Mas as realidades são diferentes e exigirão ainda mais da equipe do ITESP.
Bel – Esse é um assunto mais novo na atuação do ITESP.
Magoo – Um exemplo é o Quilombo Cafundó que já tem mais de 50 anos de luta pela terra, mas a atenção para sua viabilidade econômica é muito mais recente.
Bel – Os quilombolas são muito mais marginalizados, mesmo estando há mais tempo ocupando essas terras.
Bel – Além do que as terras no Cafundó estão bastante degradadas, pois as que foram destinadas aos quilombos, em geral, são terras marginais de qualidade inferior para o plantio.
Magoo – E eles precisam mesmo de apoio, por que muitos foram forçados a trabalhar fora, se afastando do trato da terra, pois era muito pouca, insuficiente para as famílias. Historicamente, a conquista do território reconhecido é o grande processo de luta dos quilombolas.
Bel – E o processo de aculturação, que em determinados momentos fizeram com que algumas famílias negassem a própria condição de quilombola e depois de agricultor.
Roberto – Foi a equipe do ITESP que, na fase de preparação do Plantando Águas, apresentou a equipe da Iniciativa Verde à Associação do Cafundó e, assim, a a comunidade participa no projeto.
Magoo – Agora existem políticas públicas de reconhecimento para a condição de quilombola e a participação em projetos de integração econômica e social, mas ainda com resultados incipientes.
Bem, diante das muitas conquistas que essas famílias já obtiveram, esses obstáculos relatados por Magoo e Bel não devem causar susto ou desânimo. Representam apenas mais uma etapa na trajetória de pessoas idealistas e dedicadas para as quais a permanência do homem no campo, com qualidade de vida e uma relação saudável com o meio ambiente, compensa, conforta e realiza.
* ITESP - Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo é a entidade responsável pelo planejamento e execução das políticas agrária e fundiária do estado de São Paulo, além de também atestar o reconhecimento das comunidades de quilombos. É vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania.
Atuando em todo o estado de São Paulo, o Itesp tem como objetivo promover a democratização do acesso à terra, em benefício de trabalhadores rurais sem-terra ou com pouca terra, quilombolas, posseiros, implementando também políticas de desenvolvimento sustentável para as comunidades com as quais atua. Mais do que uma política de reforma agrária, o que o Itesp busca é atuar de modo social permitindo o resgate da cidadania destes trabalhadores, com vistas ao desenvolvimento humano, social e econômico.
** SAFs – Sistemas Agroflorestais são formas de uso ou manejo da terra, nos quais se combinam espécies arbóreas (frutíferas e/ou madeireiras) com cultivos agrícolas e/ou criação de animais, de forma simultânea ou em seqüência temporal e que promovem benefícios econômicos e ecológicos. Os Sistemas Agroflorestais ou Agroflorestas apresentam como principais vantagens, frente à agricultura convencional, a fácil recuperação da fertilidade dos solos, o fornecimento de adubos verdes, o controle de ervas daninhas, entre outras coisas.
*** Esalq – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo.
Esta entrevista foi publicada na segunda edição da revista Plantando Águas.