*Magno Castelo Branco
Para os que não conhecem, Cassandra é uma personagem da mitologia grega, que recebeu um dom e uma maldição do deus Apolo: conseguia prever o futuro, mas como maldição ninguém acreditaria nos seus vaticínios.
Na madrugada da segunda-feira (31), foi oficialmente publicado o relatório Grupo de Trabalho II, que estuda o tema “Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade”, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Ele estava sendo muitíssimo aguardado pela comunidade científica, ambientalistas e autoridades das mais diversas esferas no Brasil e no mundo. E qual o porquê de tanta expectativa?
Para entender o que gerou a ansiedade, precisamos relembrar as principais conclusões apontadas pelo Relatório do Grupo de Trabalho I – “Bases Físicas e Científicas”, publicado formalmente em setembro de 2013:
- O aquecimento global é uma realidade e a contribuição do ser humano é significativa para a ocorrência de fenômenos ligados às mudanças climáticas;
- Este aquecimento é, em grande parte, irreversível;
- Grande parte do calor está sendo absorvido pelos oceanos, cujas taxas de acidificação se encontram em um patamar sem precedentes e extremamente perigoso para o futuro da biodiversidade marinha;
- Temos que agir em escala global imediatamente;
- Por fim, seria necessário zerar nossas emissões de gases de efeito estufa (GEE), ou seja, a grande maioria dos combustíveis fósseis precisaria se manter enterrada no subsolo e as energias renováveis teriam que assumir um papel fundamental e preponderante na matriz energética mundial para ficarmos abaixo de um aumento de 2°C até 2100.
E o que muda em relação ao último relatório, publicado em 2007? Basicamente, temos uma constatação mais segura de três conclusões:
- O aquecimento é certo, tem ocorrido e continuará a acontecer enquanto a participação humana nesse cenário só tem sido mais relevante;
- O aquecimento é irreversível em uma escala que deverá atingir séculos ou mesmo milênios;
- A ação imediata, mais que urgente, é essencial e em escala global.
Além disso, os cenários utilizados no relatório de 2007 foram substituídos por quatro cenários mais simplificados, chamados de “Representative Concentration Pathways” (RCPs), a saber: RCP2.6, RCP4.5, RCP6.0 e RCP8.5 (veja nas fiduras abaixo). Eles se referem à quantidade de energia absorvida pelos gases de efeito estufa (GEE). O RCP8.5 é considerado o pior cenário, imaginando como será caso a sociedade não tome nenhuma medida para lidar com o clima. Gradualmente, o RCP2.6 é o cenário de menor dano, onde o comprometimento da humanidade para evitar o aquecimento seria máximo.
No cenário mais ameno (RCP2.6), mudanças agressivas por parte da sociedade resultam em concentrações de GEE que se estabilizam e até continuam a diminuir depois de um certo período. Este cenário assume que a humanidade desenvolverá tecnologias que removeriam ativamente GEE da atmosfera, uma opção que é inviável no curto prazo. Neste cenário utópico, o aumento de temperatura até 2100 não chegaria a um grau centígrado. Já no pior cenário, o RCP8.5, o aumento poderia chegar em média a quase 4 ºC.
Quando olhamos para outro impacto do aquecimento global, a elevação no nível dos oceanos, espera-se um aumento médio de 0,7 metros até 2100, segundo o cenário RCP8.5.
Por conta dessas conclusões obtidas no Relatório do Grupo I, que sustenta essas assertivas com um grau de certeza estatístico ainda maior, é que o Relatório do Grupo II, que trata dos impactos e da adaptação, tem sido tão esperado.
E o que o relatório do Grupo II nos traz de importante? Assim como o documento do Grupo I, muita coisa não mudou em relação ao que foi publicado em 2007. Mas o nível de certeza do que pode acontecer está bem maior que antes, porém com uma incerteza maior sobre os danos que ocorrerão.
Explico: uma crítica aos relatórios anteriores era a pouca diversidade de artigos consultados para sustentar o nível dos impactos que nos aguarda. Agora, esse problema foi sanado. O Relatório do Grupo II prevê uma diversidade de impactos maior que antes, devido principalmente aos avanços científicos na área, porém não é taxativo em relação à intensidade desses mesmos impactos. Ou seja, hoje sabemos melhor que tipos de impacto esperar, mas temos uma certeza menor sobre a intensidade dos mesmos.
Ainda segundo o relatório do Grupo II, a humanidade já está sofrendo alguns desses impactos da mudança global do clima: aumento na frequência de eventos extremos, maior taxa de extinção de espécies, incêndios florestais, etc. Além disso, o documento apresenta uma visão mais aprofundada dos impactos na sociedade abordando, principalmente, a questão da segurança alimentar.
Como exemplo, o relatório reconhece que, em algumas áreas da Terra, a produtividade agrícola aumentará. Porém, no geral, podemos esperar uma perda global de produtividade com o consequente aumento no preço dos alimentos. E isso poderá aumentar, inclusive, as migrações humanas e os conflitos gerados por períodos extremos de seca. Neste cenário, obviamente, as populações mais pobres serão as que sofrerão mais.
Dissertando ainda sobre os outros vários impactos previstos pelos cenários modelados pelo IPCC, a principal conclusão do documento é que não estamos de forma alguma prontos ou adaptados para lidar com o futuro mais quente que se avizinha. A maciça transformação do nosso ambiente em escala planetária nos pegou, digamos, de surpresa. Por isso mesmo, a partir de agora a humanidade deve se juntar em um esforço comum resultando em iniciativas de adaptação e de direcionamento de nossas ações rumo a um modo de vida menos agressivo ao meio ambiente.
Se assim não agirmos, estaremos fazendo do IPCC a Cassandra de nosso tempo.
*Biólogo, Doutor em Ecologia e Recursos Naturais.