Por Marina Vieira
Capa da Science e da Nature, duas das mais importantes revistas de divulgação científi ca do mundo, o estudo que Ane Alencar desenvolveu ao se formar na Universidade Federal do Pará, em 1995, marcou o início de uma carreira inteira dedicada a estudar o comportamento do fogo na Amazônia, bioma onde ele não ocorre naturalmente. “Todo fogo na Amazônia foi colocado por alguém, por um ser humano”, afirma categoricamente a atual diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia (IPAM). Desde aquela primeira pesquisa, Alencar já investigava mudanças no uso da terra (MUT) no Brasil, conceito que adquiriu ainda mais importância sob a ótica das mudanças climáticas. Sua equipe no IPAM, juntamente com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), é responsável pelos cálculos de MUT no Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma das maiores bases de dados sobre emissões do país. A paraense explicou à revista INICIATIVA o que são essas mudanças, como se dão as queimadas na floresta e que impacto isso tem na reputação brasileira.
INICIATIVA - Para começar, o que este termo mudança de uso da terra significa, e como ele se relaciona com as mudanças climáticas?
ANE ALENCAR - Mudança de uso da terra inclui todas as mudanças de uso e cobertura do solo. O que é contabilizado como emissões por mudança de uso da terra são as emissões provenientes de mudanças, por exemplo, de floresta para pastagem, de pastagem para agricultura, e de agricultura para pastagem ou para floresta. Então são todas essas possibilidades, não só de floresta para algum uso agropecuário.
Tudo o que envolve mudança e que tem um papel na emissão ou na remoção de carbono. Se você muda de pasto para uma capoeira, para floresta, você está aumentando o estoque de carbono, removendo carbono da atmosfera.
Fora isso, a gente também faz a contabilidade de calagem, que é basicamente a correção do solo, que é colocada logo no primeiro ano em que aquela área é desmatada. Então uma vez que você desmatou uma área, era ela floresta e virou pasto ou agricultura, aí tem a correção, a gente contabiliza a correção logo no primeiro ano. Isso faz parte também do setor de mudança de uso da terra.
E a terceira coisa é a queima de resíduos fl orestais, na qual usamos como proxy (indicador) o percentual do desmatamento. É contabilizado quanto da área de floresta que foi desmatada seria para serraria e o quanto viraria resíduo florestal.
As mudanças no uso da terra têm a maior parcela de culpa no total das emissões brasileiras de gases do aquecimento global, de acordo com a última coleção do SEEG. O que o país deveria fazer para diminuir essa pegada?
Sim, é quase metade. De 2017 para 2018, 44% das emissões brasileiras são provenientes dessas mudanças de uso da terra. Sobre o que fazer, poderia começar, pelo menos, pelo combate ao desmatamento ilegal. Isso já seria top. Porque, hoje, mais de 90% do desmatamento na região é ilegal. Então, mesmo que isso leve as pessoas a pedirem aumento do percentual de desmatamento permitido, combater o desmatamento ilegal vai ter um efeito muito signifi cativo na redução das emissões de mudança de uso da terra.
Este ano o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) também chamou atenção para essa fonte de emissão ao lançar um relatório especial sobre uso da terra. Qual é a recomendação dos milhares de cientistas reunidos no relatório?
O IPCC aponta a importância da mudança de uso da terra como um dos drivers (causadores) das mudanças climáticas, e realmente combate essa questão do desmatamento, principalmente nos trópicos, indicando a necessidade de controle do desmatamento.
Reduzir as emissões ligadas à mudança de uso da terra, ou seja, parar de desmatar e restaurar florestas entra em conflito com as necessidades de produção agrícola, de alimentos e biocombustíveis?
Conciliar a produção agropecuária brasileira com a redução e possível extinção do desmatamento é super possível. A gente já provou que consegue produzir melhor, de uma forma mais eficiente, ocupando áreas degradadas, corrigindo essas áreas, tendo um melhor manejo e sem ter que abrir novas áreas sem ter que desmatar. A gente já provou isso na década passada, em que o desmatamento foi reduzido em 80%.
E neste mesmo período expandimos muito a área plantada, por exemplo, de soja, aumentou o nosso rebanho... Isso significa que a gente ganhou eficiência na nossa produção agropecuária. O que é uma coisa que está sendo pedida inclusive pelo mercado externo, que é o nosso principal mercado. Então é possível a gente fazer isso, ainda tem espaço para a gente fazer isso. Temos um pouco mais de 30% do território brasileiro aberto, já desmatado, e ainda tem muita área para ser utilizada de forma mais eficiente.
Você estuda incêndios na Amazônia há mais de 20 anos, e em 2019 os queimadas chocaram o mundo, com a fumaça chegando até São Paulo. Quão fora da curva foi esse ano?
Primeiro, é bom lembrar que os incêndios na Amazônia não são naturais. Todo fogo na Amazônia ele foi colocado por alguém, por um ser humano. Ele é antropogênico. Esse ano a gente viu uma coisa muito diferente em termos de padrão temporal do fogo. Tivemos um pico de fogo em agosto, o que não é comum, porque geralmente temos um pico de fogo na Amazônia em setembro, outubro, principalmente em setembro. Então a gente viu um pico de fogo em agosto, que foi na realidade barrado. Foi barrado porque no fim de agosto tiveram as GLOs (Garantia da Lei e da Ordem, que autoriza o emprego de militares), com todo o alarde sobre a Amazônia queimando, teve um contingenciamento de recurso para os estados, o Exército foi combater fogo nos estados que chamaram, depois teve a moratória do fogo, e isso tudo realmente teve um impacto e o fogo reduziu, sendo que em outubro a gente chegou a ter um mínimo número de incêndios dos últimos anos. Claro que começou a chover também nesse período, indicando que, realmente, se não tivesse sido feito nada a gente poderia ter tido mais fogo do que teve. E por que eu digo isso? Porque quando a gente olha o desmatamento, e aí usando os alertas de desmatamento do DETER (sistema de alertas do INPE), a gente vê um ponto fora da curva nos meses de agosto, setembro e outubro. Foi muito mais alto do que a média dos últimos anos. Indicando provavelmente que muita área que foi desmatada não conseguiu ser queimada.
Como assim?
Tivemos uma redução de fogo a partir de agosto, que não era para reduzir tanto pois o pico de fogo é em setembro. Então alguma coisa aconteceu ali, de agosto para setembro, que diminuiu o número de focos. A gente acredita que foi uma conjunção de coisas, tanto os decretos que foram feitos para combater o fogo, colocar mais Exército, dar mais dinheiro, o IBAMA voltar a agir, quanto a moratória do fogo. Indica que isso tudo teve um efeito. Além disso, voltou a chover, que também foi importante. Então o fogo reduziu muito, fi cando acima ainda de 2018 mas mais baixo que 2017, por exemplo, que foi um ano muito seco. Entretanto, o desmatamento explodiu. O desmatamento aumentou muito. E foi fora da curva. Isso quer dizer que muita área que foi desmatada não foi queimada. Porque se fosse queimada a gente teria uma explosão de fogo.
Então a gente pode esperar ainda um aumento nos incêndios?
Ano que vem provavelmente essas áreas vão queimar. Se não foi dinheiro [dos desmatadores] jogado fora.
Fale um pouco mais de como a política influencia o que acontece no chão.
O governo federal tem um papel muito importante na governança dos recursos naturais da Amazônia. A gente ainda tem uma grande parte da região que pertence ao governo, tanto federal quanto estaduais. Tantos as áreas protegidas, parques e Unidades de Conservação, quanto as Terras Indígenas, todas as terras públicas que ainda não foram destinadas... Isso dá uma área bastante grande e tudo o que acontece nessa região o governo realmente tem que dar conta. É muito importante que o Estado brasileiro norteie as pessoas, fale assim: olha, se você quer fazer desmatamento, você até pode, mas de uma forma legal. Então focar na legalidade do desmatamento é uma coisa super importante. Se a gente focar na legalidade isso vai reduzir bastante aquilo que é ilegal, vai confrontar o que é ilegal, e hoje em dia isso está muito mais fácil de fazer.
O que acontece com a paisagem depois de um incêndio?
Depende, pois são vários tipos de fogo. Tem o fogo de desmatamento, que a gente chama de queimada; tem a queimada de manutenção de pastagem, de áreas agrícolas, e tem os incêndios fl orestais e os incêndios em áreas agrícolas. Depois do fogo de desmatamento o que acontece é que aquela área é plantada, vira ou pasto ou uma área agrícola. Depois de um fogo de manutenção de pastagem ela volta a ser área agrícola, a pastagem rebrota. Depois de um incêndio fl orestal essa área se recupera um pouco, mas fi ca mais suscetível a novos incêndios. E depois de uma área agrícola ser queimada acidentalmente aí você perde tudo e normalmente ou você derruba aquela área de novo, tanta replantar, ou ela fi ca degradada. Em todos os casos você tem perda, perda de carbono, de nutrientes do solo.
Estamos chegando perto de mais uma COP, Conferência das Partes da ONU que trata das mudanças climáticas. O Brasil sempre teve um papel protagonista, e seria a sede do evento, mas desistiu. Quais são suas expectativas para a nossa participação?
A minha expectativa é muito baixa. Realmente o Brasil sempre teve um papel muito protagonista nas COPs, por conta justamente de ter um papel nesse tema de mudança de uso da terra. Nós vamos chegar na COP 25 já enfraquecido, por conta desse aumento no desmatamento, e por uma sensação de falta de governança ambiental, de desmantelamento da legislação que dava um amparo para as questões ambientais. Também vamos chegar com o estigma de não acreditar que as mudanças climáticas existem, pelo próprio chanceler, o que é uma coisa ruim e acho que acaba perdendo uma oportunidade de negócio para o Brasil, e perdendo um papel de liderança que era reconhecido e que é muito importante para as nossas importações. Hoje, cada vez mais se está tendo um olhar para essa questão da sustentabilidade, a Europa e mesma a China, grande importadores do Brasil, veem toda a parte do risco reputacional como uma coisa importante. Então a agricultura brasileira está entre a cruz e a espada, querendo manifestar uma pegada cada vez mais sustentável mas ao mesmo tempo sendo atropelada pelo próprio governo, que acaba incentivando ou se calando diante de práticas ilegais, o que atrapalha os negócios do Brasil.
Apesar disso, você vê um crescimento de negócios sustentáveis, não só na Amazônia, mas no Brasil como um todo?
Eu vejo um apetite muito grande do mercado para isso. Vejo que essa é a tendência do futuro, de verdade, do século 21: é a gente usar os recursos de uma forma bem mais sustentável, mais eficiente. Até porque a gente não sabe o futuro, não é, então ter água é importante, ter conforto climático é importante, ter biodiversidade é uma coisa que gente conhece pouco ainda mas que pode ser muito importante. As pessoas mais inteligentes e que realmente conseguem vislumbrar esse futuro, dessas commodities que hoje não são tão commodities, podem vislumbrar o Brasil num lugar de destaque no futuro, se conservar esse patrimônio nacional que são as nossas florestas.